Era uma vez uma rapariga que sempre fora infeliz, já desde tenra idade, a sua infância marcada por um pai ausente e alcoólatra, que venerava até então, era o seu herói, ambicionava ser como ele quando crescesse.
Os anos passaram, muitas garrafas de vinho fizeram parte do seu dia-a-dia, principalmente da noite…sua mãe defendia-se como podia, debatia-se com a ânsia de proteger as suas crias do mal, passando horas a fio, queimando o que restava das forças, do pesar das pálpebras…preferia ser “ela” a vítima do vício de seu marido.
Só não sabia que por ela velava, a sua cria mais velha, sua filha, sempre de olhos abertos por debaixo das cobertas, ou até mesmo escondida atrás das paredes, vigilante…
Assistindo a cenários impróprios para uma criança de quatro anos, que foi crescendo odiando aquele ambiente nauseabundo a álcool e simultaneamente a pessoa que lhe dera a vida.
Esta rapariga, desde muito cedo, obrigaram-na a crescer, a colocar-se na linha da frente do combate, depressa aprendeu a defender-se e a defender.
Foram longos onze anos a sofrer, a odiar, a revoltar-se e a viver uma vida que não pediu.
Aprendeu a rir, uma capa que usou interminavelmente durante a Preparatória.
Alguém um dia a chamou de “menina dos elásticos”.
Aliás todos a conheciam por ser tão vivaz, alegre, divertida, bem-disposta e bem-humorada, sem nunca desconfiarem que por detrás se escondia uma menina fragilizada, infeliz e sozinha.
Poderá dizer-se que teve mãe, não teve pai.
Seu pai fizera a muito custo um tratamento para curar o vício, em contrapartida diagnosticaram-lhe Esclerose em Placas, uma doença progressiva e incapacitante, sem cura, que lhe afectara o cérebro. O homem que tinha sido, iria deixar de existir, por um lado estava feliz, por outro, correria o risco de vir a ter “mais um irmão” e a família passar por grandes dificuldades económicas.
Remeteu-se ao silêncio e deixou o curso da vida correr…
Sua mãe, nunca lhe agradecera…sempre teceu um amor especial pelo rebento mais novo, a quem muito protegeu.
Foi assim até ao presente dia.
No coração desta rapariga permaneceu uma grande mágoa, um sentimento de que “mal-amada”, seu pai nunca a amou, dissera-lhe frontalmente, ainda bêbado, que ela não era sua filha, sua mãe nunca lhe dera um beijo, um abraço, um carinho, fora tudo para o irmão mais novo.
Aos treze anos começa a sentir vontade de ter alguém que lhe diga: “Gosto muito de ti..,” mesmo que isso fosse momentâneo.
Aos quinze anos, começa a namorar oficialmente, e aos dezasseis anos é chamada de “puta” pela própria mãe. O seu desejo de sair de casa é despoletado, mais ainda, mas como é menor, todas as noites de lua cheia, vai para a janela de sua casa, e ao contemplá-la lá no alto do céu, pede afincadamente que cheguem depressa os dezoito anos para poder sair de casa de vez.
Tudo para ela parecia uma eternidade, o tempo não passava…
Mais tarde e ainda com quinze anos, é-lhe detectada dupla Escoliose (duplo desvio da coluna vertebral), com uma curva bem acentuada a partir do cóccix e outra, mas mais compensatória perto do coração, vê-se a andar torta para o lado direito. Obriga-se a ela própria todos os dias a endireitar o corpo até conseguir ter uma postura correcta.
Tem também um fémur maior que o outro, o que acabará por compensar o inclinar da coluna.
Aos dezassete anos, muda de casa, como se fosse uma lufada de ar, vinda em boa hora!
Apenas sentia por parte da sua avó materna e de seu irmão algum carinho, um gostar.
Aos dezanove anos, o seu médico de família diz-lhe frontalmente que recomendava ser operada à coluna antes de fazer os vinte anos.
Acaba por pedir uma segunda opinião, decide não levar avante a operação e acaba por só fazer fisioterapia.
Aos vinte anos, é novamente chamada de “puta” pela mãe depois de uma tentativa de ajudá-la a ter o que comer, injustamente.
Teve o apoio do seu irmão, que se dirigiu a ela para secar-lhe as lágrimas, com um pouco de disparates e algumas palavras animadoras. Uns meses mais tarde, perde a virgindade, novamente é rotulada de “puta” e é ameaçada pela mãe de ser colocada fora de casa.
Sofre em silêncio, por entre lágrimas, no seu quarto fechada.
Seu irmão nada diz, mas sempre presente para colocar um sorriso no rosto.
Aos vinte e um anos perde a avó, com quem convivera desde a sua nascença. A pessoa que a protegeu da ira da sua mãe e de seu pai, com quem dormiu, e que podia dizer que se preocupava com ela.
Foi um golpe duro e seco, como um machado a cortar um tronco de árvore.
Nunca se perdoou por não ter voltado a falar com a avó e de não ter dado mais atenção do que a que dera até esta falecer.
Foram tempos difíceis de ultrapassar e teve de os ultrapassar sozinha, sua mãe precisava da alegria e boa disposição que esta rapariga tinha, mesmo não tendo, para a ajudar.
Ajudou-a e ao seu irmão, ninguém se preocupou em saber como é que ela estava, se precisava de alguma coisa.
Nessa mesma altura, logo após a morte de sua avó, por um acaso, apalpou o seu seio direito, denotou algo estranho.
Comentou com sua mãe, esta não deu a importância devida, dizendo que eram “manias”dela, por sua iniciativa, resolveu ir ao médico e após uma ecografia mamária, descobriu que tinha um nódulo, considerado na altura de Fibroadenoma.
Tudo o que teve, o poder estudar, o dinheiro que foi preciso para exames médicos, materiais escolares, roupas, tudo, tudo, proveio do esforço e dedicação ao suor do trabalho da sua mãe, seu pai nunca lhe dera nada. O que o pai recebia, gastava na bebida.
Hoje perguntam vocês por esta menina, que foi feito dela, pois bem…a vida foi-lhe pregando partidas atrás de partidas, amores não correspondidos ou que se tornaram em desamores, constantes humilhações na escola, foi sempre colocada de parte pelos colegas, era a última a ser escolhida, tinha poucos amigos, foi privada de estar em retiros por parte da igreja (mesmo tendo ido freiras pedirem à sua mãe), não acabou o Secundário, não seguiu para a faculdade como tantos outros o fizeram, teve alguns relacionamentos bastante marcantes, e emocionalmente desgastantes que no final, em vez de a ajudarem só a colocaram mais para baixo na sua auto-estima, só fizeram evidenciar mais ainda o continuar a ser “mal-amada” ou melhor, o não ser amada.
Procurou desde cedo, alguém que a pudesse amar, amou, desiludiu-se, deixou de procurar…
Tinha a noção de que príncipes encantados não existiam, apenas em contos, sabia bem que, não viriam ter com ela a resgatá-la, num cavalo branco, só pediu para viver um pouco do encanto e felicidade que os contos têm.
Pensou muitas vezes em deixar de existir, de diversas formas, pensou em fugir, em se tornar uma mulher de Deus, faltou-lhe a coragem.
Desejou ficar sozinha numa casa…se conseguisse ter dinheiro para comprar uma.
Deixou para trás o sonho cor-de-rosa de um dia vir a casar, ter filhos, ter um trabalho a ganhar bem, tal como seu pai tinha, quando era miúda.
Entretanto, aos vinte e oito anos, teve a oportunidade de ajudar o próximo, mesmo não conhecendo, isso deu-lhe uma grande satisfação, principalmente por ver as reacções tão positivas do outro lado, em resposta à ajuda prestada.
Às vezes basta só uma palavra amiga, um ombro para chorar ou desabafar.
Nessa mesma altura, “perde”o seu irmão, numa discussão acesa, este deixa de lhe falar, ignorando, desconhecendo e renegando-a como sendo sua irmã.
Mais um golpe que a vida lhe dá, como se estivessem a espetar, várias e várias vezes, uma faca de gume afiado no mesmo local até poder ver um orifício consideravelmente largo.
Já lá vai quase um ano e meio e não voltaram a falar…
Continua com o seu nódulo de estimação no peito, por vezes dores agudas na coluna e para agravar ainda tem um problema “desconhecido” (por enquanto) no fígado.
A vida não lhe sorri, ou insiste em não sorrir…
Aos vinte e nove anos não tem trabalho, não tem marido nem filhos, não tem a sua própria casa, não tem dinheiro, e a saúde também o que se lhe diga…
A menina que já chorou tantas noites no seu quarto, durante dias, hoje é mulher, mas embora crescida, por vezes também chora, escondida dos outros, à noite, no seu quarto a olhar para o infinito.
Apesar de todas as agruras que tem tido, a única coisa que guarda de bom é o conseguir, ainda, com o seu bom humor fazer rir os outros, coisa que sempre fez e continua a fazer. Talvez seja a única coisa que aprendeu a fazer bem.
O colocar um sorriso no rosto de alguém é uma vitória para ela, mesmo que no seu caia uma lágrima.
05.Julho.2010
Cristina Espalha
(História Verídica)
Cristina Espalha
(História Verídica)
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